Um desatino só

Às pessoas que, por diferentes caminhos, fazem e fizeram parte da formação de minha subjetividade, de minha apreciação e participação no mundo.

Em memória daquelas pessoas que, por suas expressões ou identidades de gênero, foram mortas ou se deixaram partir.

Em solidariedade àquelas que seguem, impessoalizadas e tratadas como tolas: ainda temos muita força, amigxs, e nada a temer.

“But we shall embrace our souls against them

I mean don’t let another day, go by” (‘Down’, Groundation)

Relutei diversas vezes antes de decidir escrever e enviar esta mensagem. Relutei até perceber que ela não poderia simplesmente ser um resultado de estruturações lógicas e retórica polida, revisadas conforme acordos ortográficos: haveria de ser desatino.

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Acontece que desatinos não surgem na sobriedade de articulações acadêmicas colonizadas — ainda que, a seu bel prazer, eles possam se utilizar destes e outros artifícios ditos científicos –; desatinos vêm da sinceridade crua das angústias, da alegria desnutrida dos corações, da indignação sangrenta das injustiças. Desatino é embriaguez que não percebe, ou finge não perceber, afinal, que o mundo é assim mesmo, e que (infelizmente) pouco mudará diante de nossa ínfima existência — e também diante das possibilidades bélicas e retóricas de quem se intere$$a pelo conservadorismo. No fundo, desatino é bravata, mesmo quando plenamente fundamentado: ‘você pode até estar certx, mas as pessoas não estão preparadas pra isso’. E você vai lá e grita, semiconsciente de suas capacidades, como se em um discurso — ou mensagem — definitivo fosse possível a redenção do mundo.

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Haveria de ser desatino, esta mensagem, até mesmo para não levar tão a sério potenciais reações negativas. Esta mensagem é flor, ademais, não míssil teleguiado; sem, portanto, precisão ou letalidade, mas ainda assim arma de resistência, forjada em indignação, realismo e esperança. E como mensagem assim, desatino-flor-arma sendo, pensar seu conteúdo foi complicado, talvez por embriaguez insuficiente ou apropriada cautela.

“Ela não vê que toda gente

Já está sofrendo normalmente

Toda cidade anda esquecida

Da falsa vida da avenida…” (‘Ela desatinou‘, Chico Buarque)

Fundamentalmente, o que causa esta mensagem é a convicção crítica da necessidade de determinados posicionamentos político-pessoais que, confesso, se alia à esperança (quiçá de ingenuidade desmedida) de amizades e afetividades renovadas e-ou intensificadas, de reflexões (des)construtivas, de possibilidades bonitas. Convicção e esperança que se sobrepõem — sem necessariamente superar — os riscos potenciais e receios das reações negativas, dos ‘sustos’ estranhamente curiosos, das risotas de botequins cis-heteros. O desatino, em sua prepotência emprestada e inconsequência típica, suspende o risco e enfatiza o brilho da esperança, permitindo-se um palavrório que é salto.

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Por sua vez, como coisa emprestada que é, a prepotência se faz frágil — felizmente. A mensagem e o desatino são imprevisíveis, mas suas existências não deixam de ser compreendidas de maneira crítica, longe de qualquer idealização sua como ‘ato de coragem’ ou ‘insurgência’ (ainda que haja, aqui, alguns traços disso): penso este ato de contar, de confessar (numa alusão foucaultiana), como uma necessidade historicamente contextualizada, como um reflexo de relações de poder que anormalizam-inferiorizam identidades e expressões de gênero que não se encaixem naquilo que se estabelece como natural (ou seja, determinado de diversas maneiras pela biologia), binário, ou permanente. E, assim, este desatino adquire um caráter político somente compreensível (em sua rebeldia) devido ao seu contexto histórico, porém mantendo, na sinceridade crua, na alegria desnutrida e na indignação sangrenta, um caráter pessoal afetivo e sincero.

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Nestes sentidos, minha intenção é dizer, neste desatino manifesto, que eu, sem prejuízo de quaisquer outras possibilidades, identidades e vivências que tive, tenho e terei, me considero uma pessoa transgênera. E isto quer dizer muitas coisas, porém fundamentalmente diz, em meu caso (sublinhe-se ‘meu caso’), que em minha constituição do ‘eu’ existe algo que, conforme determinados entendimentos contemporâneos, poderia ser interpretado como ‘uma mulher’ ou ‘uma pessoa que se apresenta socialmente como mulher’. De meu ponto de vista — perspectiva que, seguindo algumas interpretações (jurídicas, inclusive) acerca de identidades e expressões de gênero, se configura como a mais relevante –, considero que venho sendo, a cada dia mais, mulher. O que tem sido um tema de constante reflexão de minha parte e uma das causas fundamentais de mudanças significativas em projetos de vida que desenhei noutros tempos.

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Imagino que talvez surjam algumas dúvidas e interesses em torno de tudo isso. Partindo-se da pressuposição de que serão dúvidas e interesses que respeitem compreensões contemporâneas sobre identidades e expressões de gênero consagradas pelas Nações Unidas e outras instituições (ver, por exemplo, os Princípios de Yogyakarta), estou completamente disposta a reflexões a respeito deste e outros temas — pedindo para que se considerem com cuidado aquelas informações que parecem necessárias a princípio, mas que são meras curiosidades invasivas e pouco relevantes. Espero que, através de tais reflexões, seja possível examinar e desconstruir alguns mitos a respeito relacionados a identidades e expressões de gênero, e de maneira muito especial, estreitar laços de amizade e afetividade — algo que tem ocorrido entre várixs amigxs de maneira surpreendente e encantadora, compondo uma energia extremamente positiva para mim.

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Finalmente — e com tanta importância quanto a dita ‘revelação’ de minha identidade trans* –, gostaria de lançar algumas ideias, que estão, de diferentes formas, relacionadas a esta autoidentificação. O caminho trilhado nestes últimos tempos me permitiu repensar algumas coisas em relação à vida, e uma ideia central presente nesta reconsideração foi a de que necessitamos desnormalizar certas (múltiplas, infinitas) possibilidades de viver. É fundamental descolonizar — ou seja, deixar de aceitar acriticamente o discurso colonial branco, cis, hetero, cristão, eurocêntrico — nossas vistas das diferenças (sejam elas quais forem, e aqui me remeto a assuntos para além da identidade de gênero, como as diferentes formas do viver e do sentir+se, as diferentes origens étnico-culturais, as diferentes espiritualidades), para poder alcançar profundamente a ideia de humanidade comum, e mesmo do ‘ser-sentir’ comum — aqui, fazendo uma ênfase antiespecista.

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Estas ideias, que a princípio podem ser tomadas como um chamado à ‘aceitação da outra pessoa’, não se limitam a isso — uma vez que, afinal, isto seria somente repetir o espírito dos Princípios de Yogyakarta. Estas ideias, acima de tudo, são uma proposta crítica de autoaceitação e autodesconstrução do que somos e fazemos: que possamos olhar para nossas próprias vidas e refletir criticamente se elas são condizentes com aquilo que acreditamos ser o melhor para nós (considerando, sem comodismos mas com inteligência, a realidade social). De maneira que, neste caminho existencial, nos sintamos mais tranquilxs em realizar mudanças nestas vidas, ou nos regozijarmos daquilo que está bacana. Em um certo sentido, eu venho realizando esta reflexão para um aspecto, individual e socialmente, bastante relevante — a identidade de gênero –, mas acredito que muitxs de nós fazemos, mais ou menos conscientemente, reflexões similares.

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Este desatino sonha, enfim, com uma infinitude de mundos de cetim, axs familiares, axs amigxs, axs desconhecidxs. Meu mundo se vai fazendo, entre desatinos vários, de retalhos cada dia mais coloridos.

“Quem não inveja a infeliz

Feliz no seu mundo de cetim

Assim debochando

Da dor, do pecado

Do tempo perdido

Do jogo acabado” (‘Ela desatinou’, Chico Buarque)

6 comentários em “Um desatino só

  1. Querida, volta e meia passeio por aqui…além de amar seu jeito de escrever, surpreendo me reconhecendo em vc…eu, a pessoa mais “straigh” (que palavra poderia ser usada por uma pessoa totalmente alinhada e até então totalmente ignorante?) que se possa imaginar! Definitivamente nos conhecemos atraves do outro, no sentido mais antropológico, de que somos todos iguais. Questionar a normatividade que nos aprisiona a todxs…obrigada! Bjo vera

    1. Oi Vera! 🙂
      Desculpe a demora na resposta… obrigada pelos elogios!

      Acho ótimo quando a cis-heterossexualidade (o que estou supondo do seu ‘straightness’) se reconhece nas transgeneridades… é nossa humanidade comum, não é?

      Beijos, continuemos os diálogos!
      vivi

  2. Adorei, linda a sua reflexão. Devo confessar que estou nos meus primeiros passos para dar o salto mais importante da minha vida, que é passar a viver de acordo com a minha real personalidade, ou seja, ser travesti. Isso depois dos 40 e de dois casamentos, além de uma filha pequena. Imagina as minhas dúvidas quanto a levar em frente a minha transição Adorei seu blog, está me ajudado muito. Obrigada bjs

    1. Não poderia ouvir algo melhor. ❤
      Muita força neste salto… rs, sabe que foi um salto alto o primeiro item que me fez pensar 'aiiiiiiii sou trans, e agora'.. ? Foi uma melissa de saltinho rosa, da filha de uma amiga de trabalho de minha mãe. Era carnaval; imagine a tensão de gênero.

      Beijos…!

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