Sobre como eu talvez devesse escrever (notas em guardanapo)

[aviso de conteúdo: trechos se utilizando de retórica cissexista com objetivos descoloniais de gênero]

Eu talvez devesse escrever pesquisa acadêmica nas formas a que me havia acostumado nas ciências econômicas: números agregados, metodologias tidas como ‘objetivas’ e ‘racionais’ — assim como são, de forma geral, as pessoas sujeitas cujos comportamentos são modelados –, e conclusões sem sangue nos olhos.

Eu talvez devesse, mas nestes termos já não me parece mais possível; nestes termos, e dadas as realidades de pessoas trans* por tantos cantos deste cistema, não me é mais possível.

Meu sangue, a partir de minha subjetivação cultural enquanto pessoa trans* — ou até mesmo antes disso –, é o sangue derramado por cada pessoa cujos gêneros não sejam, das mais distintas formas, alinhados às normatividades cisgêneras dominantes. É por saber disso que eu quero examinar (afetivamente) meu sangue. Entender suas dores. Expurgar suas toxinas criticamente. Fazê-lo fluir gracioso, confiante, vivo. Meu sangue humanamente igual a qualquer sangue cis, e não mais sangue tido como descartável pelos becos e pistas e suicídios trans* mundo afora. Quero amar meu sangue e amar meu corpo culturalmente constituído como trans*.

Nestas sociedades doentes, nossos sangues trans* parecem contagiosos — acabam com famílias, transmitem eventualmente suas próprias vontades de suicídios a pessoas próximas, são motivos de literais vergonhas alheias. Há, entretanto, muitas formas de resistir a esta doença social cis+sexista: processos trans* revolucionários, de inspirações as mais variadas, trazem consigo as potências de efetivação (política+cultural+social+econômica) da cura de tal doença.

Se me utilizo da historicamente problemática linguagem patologizante, a intenção é de uma devolução crítica destes discursos tão utilizados contra pessoas trans*. Neste sentido, a intenção de caracterizar a cisnormatividade como algo simbolicamente doentio não deixa de ser uma pirotecnia com o objetivo de ser escutada, revertendo por instantes o olhar cis patologizante.

Afinal, apesar de todas brutalidades e desumanizações, permanecemos — pessoas trans* e gênero-inconformes — atentas.